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Cibele Forjas, Dostoievski, Mundano Companhia, O Idiota, Oficina Cultural Oswald de Andrade, Ricardo Bezerra, teatro
Quem nunca se sentiu um idiota?
Sem fins de ofensa, ser considerado idiota é um fardo de ingenuidade que pode até parecer inapropriado nos moldes de conduta civilizada. O contraponto proposto por Fiodór Dostoiévski é uma luz às mentes senis. Afinal loucura sempre foi um paradoxo na sociedade, um dia já foi considerado caso de incorporações de espíritos malignos, outro dia caso de doença. Loucos para a fogueira, loucos para tratamento de choque. É de se considerar que o conceito de loucura transforma-se a medida em que seu papel representa socialmente.
A obra “O Idiota” de Dostoiévski nos torna provocante essa questão. Conta a história de um príncipe chamado Michkin, vindo da Suíça – onde estivera se tratando de epilepsia – à São Petersburgo em busca de conhecer sua parenta distante. Michkin é o idiota, pois não se integra aos padrões burgueses da época. Alem de sua doença, ele possui um aguçado sentimento humanista da vida e por isso se relaciona com o mundo através do amor e da compaixão. Ora, amor e compaixão são elementos que não valem muito para se dar bem na vida lá, pelo contrário. Michkin a toda hora é passado pra trás, por sua ingenuidade. É odiado por muitos pois pronuncia-se diante de qualquer problema, encontrando pensamentos elevados nas menores banalidades, o que, muitas vezes, gera desconforto no entorno.
Desconforto perante os loucos. Já parou pra pensar que isso é recorrente? Por que existem tamanhos desconfortos a essas pessoas que se expressam mais pela desrazão, pela sensibilidade, pela sinceridade ingênua? Razão se tornou norma de conduta moral; humanismo fraqueza.
Penso que as pessoas tem medo de se mostrarem sensíveis demais, de exporem seu lado animal que nada mais é sua condição pura de humanidade. Atrofiar-se do profano desejo, das pulsantes condições de gozo e saliva, envergonhar-se do ódio que sentimos ao amar, dos sonhos esquisitos, vontades abstratas de uso do corpo, da vibração do contato de corpos, da sinceridade da carne. Se a moral existe enquanto norma, é porque por natureza somos imorais, e do reflexo desta negação é que se criam os loucos, os depravados, os diferentes. São destas categorias binarizadas, a quem sentimos desconforto, raiva (e por que não inveja?) sem perceber que são eles os espelhos daquilo que tentamos assassinar de nós mesmos por medo. Em “O Idiota”, vê-se claramente um campo de forças polares: os geradores de caos, representados pelos personagens atormentados pelas paixões, quase sempre egocêntricas, e pelos desejos orgulhos; e do outro lado Michkin que representa o amor determinado a harmonizar tudo e todos compondo o romance. Os primeiros mostram-se afetados pela sede desse amor e compaixão, e por isso reagem com ataques que o machucam e o fazem sofrer. “O que é ser feliz? Quem é feliz?” pergunta a personagem Aglaia.
Fiodór Dostoiévski teve uma vida conturbada, sempre acompanhado da presença da morte, seja de seus próximos (pais, esposa, irmão e filhos) seja de sua própria. Com 28 anos, sob acusação de participar da conspiração para assassinar o czar Nicolai I, é preso e condenado a morte. Diante do pelotão de fuzilamento, recebe a notícia de que sua sentença é comutada em quatro anos de trabalhos forçados na Sibéria. Repleta de intensidades, Dostoiévski direciona sua “loucura” à literatura, produzindo magníficas obras. Para ter um produto artístico que, atemporalmente mantem um vínculo sensível com seu expectador, o fazendo chorar, rir, sensibilizar-se, arrepiar-se, remeter-se a seu interior, o artista se dispõe de elementos diferente daqueles que se bloqueiam à vida sensível. São nos momentos em que se encontram mais sensíveis que a inspiração visita, e o produto se torna seu suspiro, sua expressão daquela dor que carrega. No caso do autor russo, percebe-se diversos elementos íntimos de dor em sua obra. “Se as personagens de Dostoiévski se ocupam, principalmente, com uma introspecção e com uma atenta e profunda autoanálise, pode-se ter certeza de que seu herói terminará com uma corda, uma bala na cabeça, na Sibéria, ou seja, não da melhor maneira. Uma autoanálise crua e hipertrofiada ou a mais refinada reflexão (na ausência, por sua vez, de autoelaboração e autossuperação, ou seja, de uma ação verdadeiramente moral) não contribuiriam para o renascimento espiritual dos heróis, não os levariam de ‘trêmula criatura’ em direção a ‘um ser absolutamente belo’. Pelo contrário, esta dialética ‘afiada como uma navalha’, pode ameaçar seu porta-voz de autodestruição.” (Ígor Vólguin – Poeta, escritor e pesquisador). Dostoiévski publicou “O Idiota” quatro anos depois da morte de sua primeira esposa e de seu irmão.
O que faz um blog de cobertura poética de São Paulo escrever sobre uma obra literária russa de 150 anos atrás?
Aí começa minha extraordinária aventura.
Tive a honra de assistir, viver e interagir este comovente romance em forma de novela teatral. Uma característica dessa obra é a do folhetim, que determina o fluxo e a seqüência dos momentos de tensão de modo a prender a atenção do leitor e mobilizar sua curiosidade, deixando a história em suspensão até o capítulo seguinte. Como uma tele-novela brasileira (não querendo comparar seu conteúdo) e sim sua forma, recuperada também em alguns elementos culturais brasileiros na própria peça (por exemplo a marchinha e o candomblé). O espetáculo, em sua estréia no final de 2009 contava com três partes, cada parte alguns capítulos (12 no total) e cada capítulo seu dia e local. Uma experiência voltada ao desafio de fazer o público ficar curioso e retornar em um outro momento para poder acompanhar a trama. Minha experiência foi diferente. Nesta reabertura na Oficina Cultural Oswald de Andrade, a peça era intensiva, 6 horas apenas divididas em dois intervalos (30min e 15 min respectivamente) entre as três partes; a sensação foi diferente, porém também inovadora, já que nunca havia assistido um espetáculo teatral tão longo. O desafio era outro: como manter este público sem esgotá-lo física e mentalmente até seu desfecho. Tarefa cumprida. Não notei nenhuma desistência.
Dois elementos mereceram destaque: palco em movimento e interatividade.
Rompeu-se com aquela tradicional estrutura palco/público. A cada mudança de ambiente (trem, cozinha, escritório, sala de jantar, etc.) o espectador percorria em movimento através de todo o espaço da oficina, vale dizer que tive a mágica sensação – resgatada pelo profissionalismo cenográfico – de que a peça foi programada especialmente para aquele espaço, o que não é verdade visto que sua estréia foi no SESC. O deslocar-se e o reconfortar-se sob diferentes planos e perspectivas (ora circular, ora em forma de vagões, ora em almofadas no chão, ou mesmo em pé no pátio), a belíssima trilha sonora e sonoplastia ao-vivo interagindo enquanto sujeito personagem (realmente estão de parabéns) quebrou a sensação de tédio, mesmice e passividade – que em qualquer peça de 6 horas poderia provocar – gerando uma horizontalidade sujeito-ator/sujeito-expectador. Isso foi fundamental, uma nova dimensão que nos levava junto à história. Cenário passa a ser a própria cidade viva, personagem passa a ser de carne viva e mesmo a própria história passa a ser realidade. Eu deixei de ser eu e interagi frente-a-frente com um ser que não era nem ator nem personagem, e o resultado desta interação foi pura sinceridade e pura afetividade. Nunca esquecerei do momento em que fitei com uma expressão de tristeza os olhos de Michkin e senti que o mesmo reagiu cúmplice desse mesmo olhar, mas não como se fosse uma atitude de um personagem de ficção, e sim um ser humano que realmente sentiu aquilo. Após esse contato chorei, pois me vi na posição de próprio Idiota tomado pela compaixão. Absorvi Dostoiévski em minha própria carne de tal maneira que nunca havia sentido sentado lendo seu livro. Esta foi a magia do espetáculo: me tornei o Idiota. Me idiotei.
O espetáculo encerrou suas apresentações dia 20 de abril de 2012. Produzido e realizado pela Mundana Companhia e dirigido por Cibele Forjas.
Gravuras: Ricardo Bezerra